Com Navalhas e Navios

Urbano Bettencourt

Prefácio de Carlos Bessa

O desencanto, a melancolia e as perdas que perpassam pelos versos de Urbano são esse misto de geografia e história, parábolas da condição humana. Contá-las, mesmo que elipticamente, é um modo de registar poeticamente um tempo, um lugar, uma cultura, uma tradição comuns a várias gerações e ao que vulgarmente se designa de alma humana, sintetizando e deixando memória de uma resiliência, até contra os chavões com que nos querem aprisionar e cegar: “Onde for o lugar de tudo isto e a memória / desse lugar, / aí encontrarás a raiz exacta / das palavras, / a seiva / de que a vida se sustenta.” O título desta colectânea, Com navalhas e navios, onde se deixa um livro e vários poemas de fora, numa obra já de si bastante breve, constitui, pois, não só o balanço de perto de meio século de escrita poética, como dá bem a medida de uma tensão entre os tumultos interiores e as metáforas que exprimem as dinâmicas do que se observa, sonha, pensa e sente, numa luta constante entre o sofrimento e a alegria, entre as “manhas do tempo”, “uivos /
e fantasmas” e “as sílabas que estremecem sob a pele / ao rumor do vento” ou “as palavras afundadas no abismo do corpo”, todos esses “sedimentos, o secreto / fulgor das mais antigas fundações”. Podendo mesmo, de quando em quando, entregar o seu estro ao humor “deletor ou deletante”, “transformando o deletor / na matéria deletada”.

Carlos Bessa (do Prefácio)

 

Excerto

AGOSTOS

 

Num Agosto assim talvez chovesse outrora
muito longe daqui. As nuvens vinham de leste
e abriam o seu ventre subalimentado sobre
as nossas cabeças: metralha e fogo e luz
e um homem deixou no adobe da parede
o seu retrato de cinza.

E no entanto havia corpos
prontos a dar-se entre o desejo mudo
e o inferno. Caíam as aves, não co’a calma,
como dizia o outro, mas co’as cargas
de napalm, que são o reverso
do verso lírico (e do épico também).
Vinham as chuvas e partiam
e não lavavam lodos nem apagavam
o fogo que ardia sem se ver
(disto sabia ele, o poeta),
sobre uma esteira podia morrer-se de loucura
num corpo a corpo de vencidos,
desafiando a sombra da outra morte, a que vem
por trás e por diante, da direita e da esquerda,
e deixa os seus dentes metálicos na carne destroçada.

Lembro-me destas coisas e de outras mais
ao cruzar-me com os pares que se devoram
em jardins de cimento, indiferentes
a quantos estudam o terreno em variadas línguas
sobre mapas que trocam os sinais da mata
e dos rios por números de autocarro, paragens
do metro, um ou outro museu, lugares a ver de fora e de longe,
mas nada nos dizem sobre o modo de evitar as emboscadas
da guerrilha urbana.

Não há chuvas neste Agosto. A calma
vibra nos telhados, as guerras trazem outros nomes,
outros donos. E talvez seja assim que tudo tem de ser.
E talvez seja este o melhor dos mundos.

Nota de leitura

Ficha Técnica

ISBN: 978-989-8828-79-8

Dimensões: 15×17,5cm

Nº páginas: 168

Publicação: 2019

Edição: # 168

Género: Poesia

Colecçãoazulcobalto # 071

PVP: 16 euros

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