Boca aberta
Paulo Ramalho
Um poeta que deve palavras ao mar abre a boca para saldar a sua conta. No vaivém das marés, as ondas arrastam também o lamento do mundo para dentro dos versos.
Excerto
mergulha então por dentro de ti
no mar é onde se erguem os barcos com
suas proas femininas seus dorsos
esquivos no mar se convocam os ventos
alguém chama por ti no silêncio
ondas incham e desincham velas
cantam a canção do desejo oculto
entre as palavras só falta ao corpo
um mastro um rosto um poema
uma virgula húmida um leme
para rasgar o mar uma língua
para lamber o sal que há nas coxas
Nota de leitura
Paulo Ramalho publicou o seu primeiro livro em 1992. Outros seis livros se seguiram, incluindo o que apareceu agora e se intitula Boca Aberta, título que encontra o seu sentido na epígrafe com que deparamos no início: “o mar/ no seu lugar pôr a minha boca”. O mar, a linha do horizonte, as gaivotas, os barcos, as “palavras como peixes turvos”, a “flor do sal” são algumas das imagens recorrentes neste livro que foi editado no Açores. Há nele, de facto, uma vivência insular que se insinua, um sentido de isolamento que a referência ao mar pode redimir ao trazer consigo a imagem de um campo cultivado. E isto podemos ler no poema que se segue, aqui transcrito parcialmente: “nem tu sabes o que procurar/ no gume das ondas na seara de limos/ que a maré ceifa […]/ uma vertigem/ no ar que te propõe um cais/ para o sonho e uma foice de incertezas/ como habitação para o teu centeio […] já te cresceu pão por dentro das mãos”.
(Fernando Guimarães, recensão crítica em JL, 12 de Setembro de 2014)