Azares da Poesia
Jorge Fazenda Lourenço
Os poemas, os ensaios, podem ser actos críticos, complementares? Eis a pergunta que este livro deseja, ao configurar-se como um auto-retrato, provisório e fragmentário, que explora a possibilidade de composição de um rosto no espelho-azar de outros rostos: Almeida Garrett, António Nobre, Cesário Verde, Vergílio Ferreira, Ruy Cinatti, E. E. Cummings, Armando Freitas Filho, Adélia Prado, e mais: pai, Maria do Carmo, Elvira, eros. O livro fala do modo de escrever poemas e de ler poetas, e do desejo de mundo, que é um desejo de poesia, que neles habita. Linhas e planos, traços e incisões, lugares ínfimos de uma voz que faz do acaso a sua necessidade.
Excerto
Ruy Cinatti é um desses cidadãos do mundo que não acaba onde nós findamos. Português das sete partidas e das nenhumas chegadas, filho de sangue italiano e algarvio, macaense e transmontano, nascido em Londres, engenheiro agrónomo, antropólogo, «etno-poeta», irmão de sangue de timorenses, este nómada do inteiro-mundo, tal como o Ossobó são-tomense da sua história, que eu ouvi das suas mãos, «gostava de ver tudo. Desde muito novo que andava de vale em vale, encantando as outras aves com a sua verde plumagem e com a sua voz melodiosa. […] Chegava a um lugar e logo depois se ia embora». Assim foi, com ênfase especial para aqueles lugares onde o português ficou em lembranças repartidas. Lugares da memória que Cinatti perpetuou em poesia: Ossobó (1936), Crónica cabo-verdeana (1967), Uma sequência timorense (1970), Os poemas do itinerário angolano (1974), Timor-Amor (1974), Paisagens timorenses com vultos (1974), Lembranças para S. Tomé e Príncipe, 1972 (1979), e noutros poemas dispersos pela restante obra.
Mas, atenção, Cinatti não é um «poeta ultramarino». Os seus lugares da memória são os do seu nomadismo (de Ataúro a Sintra), não só exterior como, sobretudo, interior:
Tanta coisa para ver,
Namorar, meter no bolso
Da memória que é um poço
E vagabunda, como eu.
E é desta memória vagabunda (mais até do que descritiva) que, em geral, se fazem os seus versos, nos 21 livros de poesia que publicou em vida.
Nota de leitura