Atuns de aquário & outras estórias
José Pinto de Sá
No cinquentenário da Independência, Moçambique tem um terrível balanço a fazer, mas o exotismo não serve. Com que voz se narra um país de guerras e fomes endémicas onde uma frota atuneira enferruja no porto há dez anos, sem ter pescado um único peixe? Por outras palavras, para que serve um escritor num dos países mais atrasados do planeta, com 15 milhões de analfabetos e 15 livrarias?
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Excerto
O lixo, que ninguém recolhia há semanas, amontoava-se nos passeios, disputado por corvos e ratazanas. Exalava um fedor intenso, muito mais forte que o costumeiro odor da noite, cocktail de frangipani e esgotos a céu aberto.
Assim chegámos à Praça de África, o ponto mais perigoso do percurso. O Papá espreitou, fez-me sinal de que o caminho estava livre. Pensei «O kota não vê um palmo diante do nariz», mas ele virou a esquina e segui-o. E fui eu que caí.
Levantei-me dorido e humilhado. Tropeçara num cadáver estendido no passeio, um jovem de calças pretas, camisa branca e lacinho. Talvez um empregado de mesa que recolhia a casa depois do trabalho. Já lá não chegou. Se dobrasse a esquina um minuto antes, ou um minuto depois, não seria apanhado no fogo cruzado. Mas foi, sabe-se lá porquê, se é que há um porquê. Agora está ali estendido, com metade da cabeça a menos. «Já é tarde e o João nunca mais chega» (ou «Já é tarde e o Salimo nunca mais chega») estará a dizer a mãe, ou a namorada, sei lá…
Havia outros cadáveres espalhados pela praça, um soldado e cinco ou seis civis, inchados, grotescos, cobertos de moscas, cada qual no seu charco de sangue meio lambido pelos cães. Sobre eles pairava, adocicado e nauseante, o cheiro a morte.
Nota de leitura