Até para o ano em Jerusalém

Maria da Conceição Caleiro

Um homem e uma mulher – Vicente e Maria Luís (Kowalevsky) – cruzam-se ocasionalmente numa festa em casa da narradora; ele, professor de História Contemporânea, temporariamente separado, a terminar um livro, de partida para um semestre de aulas no Rio de Janeiro; ela, artista plástica. Usa como nome artístico o estranho apelido encontrado em cartas de família à beira do lixo, numa mudança.
Apaixonam-se. Mas Maria Luís é seropositiva. Não ficam juntos.
No Brasil, na PUC, Vicente encontra um colega que possui “de verdade” o nome Kowalevsky, de origem judaica. Será este que o leva a pesquisar a origem do nome, a raiz e o rumo do nome. Imiscui-se nesse mundo e será a partir dessa investigação que chega à sua fonte: um refugiado polaco – Iossef – terá saído de Danzig, chegado a Inglaterra, daí aos Açores e dos Açores ao Brasil. Em S. Miguel vive uma paixão que só o fulgor da terra e o presságio das fumarolas expelem. Só depois da sua morte o passado será revelado.

Excerto

Espalhou pelo corpo o leite, perfumado, e sentada ao espelho penteou o cabelo, passou nos lábios uma cor suave, mais brilho do que outra coisa, um gloss rosado. Depois, estendeu-se e entre almofadas acabaria por adormecer. Quase a meio da noite, já dormia, se bem que o coração velasse ainda e o seu jardim húmido empolgado ardia. Pela madrugada, David chegou, estaria cansado da demora, dos sucessivos atrasos, ansioso por saber dela, por saber ao certo se ela lá estaria. Pediu ao empregado que largasse a mala à porta. Entrou com cautela, noite silenciosa, apenas uma luz fraca, de presença, foco suave. Ansioso, coração pulando na boca. Maria Luís sentiu. Riu, riu alto, correram-lhe as lágrimas, chamou-o, deu–lhe de beber, e mesmo sedento e cansado, amaram-se como bichos, e foi bom. O dia primeiro.

Nota de leitura

Até para o ano em Jerusalém é uma metáfora do século xx, um século que gerou revoluções e genocídios, segundo Hobsbawn, a maior guerra civil europeia de sempre. E no centro a escuridão irradiante da Shoa. (…)

A história de Maria Luís e de David é também uma história de desamparo que os leva numa espécie de peregrinatio ad loca infecta, de Lisboa aos Açores, ao Brasil, à memória de um tempo alemão passado, mas tão presente. Para estes dois toda a terra é uma expulsão: a Europa expulsa os judeus, os Açores expulsam o exilado, o Brasil acolhe, integrando, assimilando, isto é, expulsando cada um da sua identidade, esbatendo quase todas as diferenças. (…)

Maria Luís e David não sabem que a terra mítica do encontro, Jerusalém, é uma terra provisória, ou melhor, impossível, que o leite e o mel só correm nos textos. E que é neles que muitas vezes se renasce.

Como diz Derrida em Donner la Mort, «a Europa sofre de não assumir a responsabilidade, quer dizer, a memória da sua história como história da responsabilidade.»

Até para o ano em Jerusalém é também um texto contra uma Europa que esqueceu, transformando o Holocausto, a guerra fria e a sida em temas de discussão académica, esquecendo que as tragédias só verdadeiramente nos questionam enquanto o seu núcleo obscuro permanecer de certo modo inabordável. A explicação pode ter o efeito perverso de uma desculpabilização. De uma desfiguração.

Rui Nunes: excertos da apresentação feita no dia 8 de Maio de 2015 na FNAC/Chiado com Gonçalo M. Tavares, leituras de Cláudia Jardim, Natália Luiza, Paulo Lages e Pedro Zegre Penim.

 

“Aquela terra – diz ela a determinada altura – perturbava. Sempre a bulir lá por dentro, lá pro fundo, e nem se via sempre. Nunca tinha visto nada assim. Sentimentos tão extremos, amor e ódio. Ou os dois juntos, par a par. Fermentava, massa lêveda, adâmica. Vagarosa atmosfera enredada. Chuva miúda, dava vício. Calor húmido, tecto baixo. Transpirávamos. Fez partir muitos, a outros amarrou como as presas de um polvo maldito de tantos braços que se estendiam sem soltar quem foi uma só vez apanhado e por lá foi ficando. Sentia-me já possuída. A certa altura, num dado ponto alto da estrada, do alto, num momento de céu aberto, via-se mar dos dois lados. Senti as lágrimas, por nada. A fragilidade do lugar”.

Até para o ano em Jerusalém deve ser lido pelo muito mais do que nos devolve nas suas páginas, particularmente pelo que me parece ser um dos seus temas predominantes – a nossa identidade por entre a catástrofe, a memória da vida e da morte, do amor e do ódio, de quem e como somos. Só que a terra açoriana é visitada aqui com muita originalidade e olhos de fora – que vêem quase tudo o que nos escapa aqui ao lado, o paraíso e o inferno desafiando-se eternamente.

Vamberto Freitas, Açoriano Oriental, 22 de Maio de 2015

Ficha Técnica

ISBN: 978-989-8592-61-3

Dimensões: 14x22cm

Nº páginas: 220

Ano: 2015

Nº Edição: 54

Género: Romance

PVP: 15 €

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