Às duas horas da manhã

Falk Richter

Esta é uma peça contra as virtudes badaladas do progresso sem fim em que andamos metidos narrativamente, pelo menos desde o início do consumo em massa, da sociedade do espectáculo e do consumo de massas. Opta por estar na contracorrente.  Sobe o rio a caminho da nascente. É o incómodo total, nenhuma corrente a favor.

Para isso, é uma experiência radical na forma, mesmo sem um corte absoluto com a tradição, antes a cavalo nela. Um texto que aposta num devir cénico sem receita e que revisita formas monologadas reconhecíveis — a primeira cena — e outras, a terceira e a entrevista de emprego, logo a seguir, que são “teatros” que não fogem à convenção, antes as usando. Mas os discursos ganham outras formas e a presença do autor está por toda a parte. A ideia de uma “personagem” autónoma reivindicando uma existência própria não existe — algumas naufragam e de repente são visitadas pelo autor tão aflito quanto elas. Os discursos remetem, mais directa ou menos directamente, para um sujeito de enunciação autoral que, e essa talvez seja a novidade, se apresenta também num estado caótico, expondo a sua fragilidade e nenhumas certezas. Não há teses neste teatro, há indagações em devir, reflect/acção, um caminhar possível para a introspecção que se faz análise, um bruto dos dados a associar para ensaiar como as palavras se ordenam enquanto compreensão através do jogo e da fala, actos físicos íntegros, complementares e integrados. O autor também se despe, nada vela, nem as memórias familiares íntimas. Quando Lisa fala dos pais, vemos Richter a falar dos seus, dessa incomunicabilidade que nunca permitiu o encontro e que quando se tornou evidente já era tardia.

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Excerto

(…)

TIMO – Às duas da manhã eu penso, de súbito: falhaste tudo, falhaste tudo.

LISA – Tens um trabalho medíocre, amigos de merda, livros de merda, ouves música de merda, alimentas-te mal, vestes trapos que não prestam e NÃO SABES O QUE QUERES.

MAX – VÁ, MUDA DE VIDA.

TIMO – SIM, VÁ, MUDA DE VIDA. A PARTIR DE AMANHÃ FAZES TUDO DE FORMA DIFERENTE.

LISA – Aprende finalmente a CONSUMIR MAIS CONSCIENTEMENTE e a GERIR CORRETAMENTE O TEU TEMPO.

(…)

MARC – Às duas horas da manhã quero de imediato assumir uma posição. Encontrar UMA POSIÇÃO perante tudo isto. Eu tenho de conseguir. Eu tenho de quebrar esta barreira de som. Eu tenho de conseguir perspectivar finalmente tudo isto, encontrar a forma CORRECTA DE LIDAR com tudo isto, COMPREENDER FINALMENTE TUDO ISTO, COMPREENDER FINALMENTE COMO EU COLOCO TUDO ISTO NUMA COERÊNCIA CLARA, ESTRUTURADA E BEM ANALISADA EM TODOS OS SENTIDOS EQUILIBRADA, E AHHHHRRRRGGGHH, EU PROCURO UMA COERÊNCIA NA QUAL ME POSSA FINALMENTE POSICIONAR A MIM MESMO E A ESTE MUNDO EXTERIOR.

Nota de leitura

Ficha Técnica

ISBN: 978-989-9154-33-9

Dimensões: 14x22cm

Nº páginas: 84

Ano: 2024 | Fevereiro

Edição 318
Género: Teatro

Colecção: azulcobalto | teatro | mundo # 012

PVP: 16,85 €

Autor