Ao ouvido do Diabo
Rui Xerez de Sousa
Posfácio de Abel Neves
Não importa muito se um livro de poemas vai ou não salvar a pele de quem o ler. O que vale é ouvir o que está dito e, neste Ao ouvido do diabo de Rui Xerez de Sousa, seguir os passos, ouvindo-os, como quem acompanha um bicho ao açougue, procurando até entendimento com quem se atreveu à escrita. E tanto vale procurar os veios que podem levar mais acima – a uma espécie de ternura amorosamente explicitada – como afundar nas lamas mais abaixo que, sem surpresa, as naturezas fazem deslizar e o escriba pode esclarecer. Talvez haja confissões, desprezando a biografia, e desmesuras com o novelo do mundo. Não será uma humanidade absolutamente desolada a que entra e sai destas linhas mas também não é uma cruzada de arco-íris. As coisas são o que são e esta é uma poesia que, julgo, descola daí, mas desfazendo a nitidez da dor. A propósito da sintaxe, creio saber porque me ocorreu pensar na pintura de Caravaggio, nos pés, mãos e unhas gastas das personagens, ou no sagrado que sobrevive ainda rente às falas despreocupadas de cada um de nós por aí. O que vai escrito leva muitas vezes o lodo do que se diz, o que é uma riqueza, e se pressentimos a honestidade nas palavras é porque a verdade e a beleza andam juntas e muito perto. A poesia tem destas coisas, a falarmos uns para os outros é que nos entendemos – ou não – e Ao ouvido do diabo descontrola o certo e o previsível. É um afiar de lâmina para um qualquer ajuste de contas, sim, poderá ser, mas também oferece o aroma para dias mais claros, menos injustos. E verdade seja dita: a releitura torna o livrinho ainda mais amigo.
Abel Neves
Excerto
x
Estás aos pés da cama
garganta cortada e navalha na mão
(uma assinatura para reclamar a autoria).
Sei que estás morta quando cuspo o teu sangue
e de golfada em golfada
evito sorrir quando te digo
com gengivas ensanguentadas
– Não te preocupes…
em breve acordo e fica tudo bem
tu de um lado do muro eu do outro
atirando rockets como poemas de amor.
Nota de leitura