Alfabeto Adiado

José Ricardo Nunes

Em Alfabeto Adiado assistimos às deambulações de um sujeito, abstracto e indefinido, que se vai afastando de si e chega a sonhar trocar-se pela escrita. Causas e propósitos cedem a cada passo à alucinação e à plenitude do vazio.

A vida torna-se num labiríntico exercício de solidão e abandono. Avança-se aos círculos, sem outro ponto de partida que não seja a infância, sem outro caminho de regresso que não seja por entre os irresgatáveis fragmentos de uma memória imaginada.

 

Excerto

«Não tocaram num objecto, não mexeram nos papéis, ainda frescos, que nada de maldoso continham. Notem que escrevia sonetos incipientes, atormentando-me com o imperativo de respeitar em absoluto uma ideia de forma. Imaginem algo que jamais tenha acontecido, uma coisa inofensiva, uma pedra a germinar. Raramente as pessoas diziam o que viam. Impensável atribuir a cada coisa o seu nome. Uma pedra jamais poderia ser uma pedra. Ao longe o fumo pairava sobre os subúrbios. Larguei tudo à pressa. Seria imprudente arriscar, certamente voltariam. Ao fim de uma semana desfiz-me do carro e das coisas pesadas. Passei a trabalhar em quintas, a troco de abrigo e comida. Tornei-me realmente suspeito. Mas a verdade é que as pessoas olham e olham e não fazem perguntas. A maioria das pessoas é boa. Nos primeiros tempos custava-me não poder conservar o que ia escrevendo. A deambulação constante, aliás, tinha sobre mim um efeito inspirador. Percebi que se tratava do preço a pagar por tanta liberdade. Aceitei-me assim.
Falar sozinho não me entristece. Mais não quero do que levar uma existência em linha recta. Desenvolvi, entretanto, um método inovador que me permite memorizar qualquer texto com facilidade, por mais longo que seja, tornando assim exclusivamente literária a minha existência.»

Nota de leitura

Ficha Técnica

ISBN: 978-989-9007-93-2

Colecção: azulcobalto 

Dimensões: 13×18cm

Nº páginas: 122

Ano: 2023| Janeiro

Nº edição: 281

azulcobalto # 115

Género: poesia

PVP: 16,50 €

Autor