Ajax, Regresso(s)
Jean-Pierre Sarrazac
Quantos regresso(s)? O de Ajax. O de Ulisses fica claro. O cão que espera Ajax remete para Argos, o de Ulisses, o único ser vivo que o reconhece imediatamente no regresso a Ítaca, para logo morrer. Outros regressos? O de Agamemnon é outra tragédia. Mas não haverá outros, outras vias realizáveis? Talvez o regresso da Jovem Mulher à vida vivível feita a travessia lutuosa que o texto propõe após o massacre, os corpos traumatizados pelas violações em série. É outro, este regresso: no final de Ajax Regresso(s) um regresso ganha de facto protagonismo, o regresso à vida depois da mortandade está na sugestão da adopção da criança órfã e na construção de uma nova família como horizonte — o princípio esperança aí reside.
Ajax é pós catástrofe, teatro da catástrofe. O que devém narrativa é fora do drama, não há o momento de purga emocional por via de um clímax que a resolva em choque, o mar de sangue já foi. Sabemos logo que os últimos combatentes atravessaram a aldeia. É o caso de Ajax — cujo nome nunca é pronunciado pela sua “alegada” mulher que, não o nomeando, se recusa a ver nele o outro que ele diz ter sido —, o último a largar as armas, o guerreiro que combateu até ao último morto.
A peça explora, obsessivamente, entre tantos regressos, um regresso que no presente dos acontecimentos narrados a Ajax se veda, o re-gresso à sua vida anterior, o regresso da sua vida anterior. É o seu projecto actual, o desejo que o toma, o sentido do caminho que cumpriu até à terra natal, agora desfigurada, como ele próprio. Tudo virou sombra, as ruínas são a mesma terra devastada por toda a parte, dessa destruição não emergem singularidades de arquitectura e rostos que sejam memória identificável, nada é o que foi.
A tentativa de recoser a vida a partir de uma vivificação dos anos de amor e paz, memória incerta, necessita de confirmação no acolhimento da “alegada” esposa e esbarra na respota negativa da Jovem Mulher: «não te conheço, não sei quem és» — Ajax não é o herói da tragédia, mas um serial killer que de matar já nem sabe quem mata. Esse regresso a si mesmo, no tempo, como futuro, é-lhe impedido, a violência espalhou-se como uma metástase, generalizando-se em função do antagonismo para com o outro que, a certa altura, são os nossos chamados outros.
Excerto
A MULHER JOVEM, diante da porta: Eu não volto para dentro. Para já não. Fico ainda um pouco aqui convosco. Até que a noite caia. Talvez mesmo depois. A noite já não me amedronta. Nem estes murmúrios entre as ruínas. A vida tem de continuar. Podia ficar aqui horas, sem pronunciar uma só palavra, apenas a gozar a doçura do fim da tarde. A escuridão da casa vazia atrás de mim não me assusta. Não tenho receio agora. Posso, de acordo com a minha vontade, ficar lá dentro a ouvir os pequenos ruídos da casa, ou sair e cruzar-me com as sombras que se apressam. Lá dentro ou cá fora, sinto-me à vontade. Perguntam-me o que se passou comigo? Não sei nada. Uma espécie de libertação. Um sentimento de liberdade. Pela primeira vez, ouso olhar à minha volta. Volto a descobrir a paisagem em que caminhava às cegas. Sei que à minha volta só há desolação. (…)
Nota de leitura