ABN da Pessoa com Universo ao fundo

Leonor Sampaio da Silva

Uma PESSOA é uma criatura humana, sinónimo de deusa, cordeirinho branco, dona do cão, autor de sucesso, homem viril, historiador e pintor do futuro. Possui um ABN – ácido bardonucleico – composto artificial adulterado que reúne moléculas alfabéticas e genéticas determinantes da estrutura física e intelectual da Pessoa; sequência espiralada onde se armazenam as informações azedas necessárias à sobrevivência do organismo em interacção com o meio ambiente, incluindo os organismos propensos a comportamentos exaltados, motivados por caprichos.
Esta PESSOA, possuidora deste ABN, move-se num UNIVERSO – o conjunto de tudo quanto existe, o sistema solar, com os seus planetas, satélites e astros, o mundo, a sociedade ou núcleos microcósmicos de entes auto-suficientes na sua totalidade. Sinónimo de estrela e companheiro de todas as horas, significa que, perante as antenas de uma barata avariando o radar, se deve perguntar: o que é isso comparado com o infinito?
É este o mundo criado por Leonor Sampaio da Silva no seu ABN DA PESSOA COM UNIVERSO AO FUNDO, um conjunto de prosas breves, em jeito de dicionário, que na sua toada “non sense” e bem humorada olha de um modo muito agudo para os nossos pequenos quotidianos e interpela o tempo em que vivemos.

 

Excerto

A
ALMA
[quando está desconsolada] Entra numa pastelaria e demora a escolher um recém-cozido. Ou seja, a Pessoa é gulosa. Consome diariamente uma boa dose de chocolate cuja quantidade exacta deixará omissa para se proteger da intolerância que a opinião pública habitualmente dedica aos pecados alheios. Sabe bem que o povo só se compadece das fraquezas que não vê, especialmente das que jazem em enfermarias alvas, exiladas para a periferia dos comércios, pois que em tudo sobre que recai o seu olhar encontra o povo mofo, graxa ou desatino. A Pessoa resguardar-se-á dessa intolerância, portanto, omitindo contas de somar, mas não ao ponto de mentir, razão por que reitera a fraqueza de espírito que precipita as suas mãos numa demanda desesperada pelo aglomerado de açúcares, ovos, leites, frutos e farinhas tão competentemente tocado por mãos divinas que dir-se-ia nascido de parto natural dos fornos industriais das pastelarias citadinas.

Nota de leitura

Este é um livro que é uma grande gargalhada organizada. Uma mistura entre disrupção e dicionário. Gesto rabelaisiano, riso com significado que ou se manifesta numa sátira distópica, como em “Ku Klux Klan”, ou numa fábula com animais que, parecendo amáveis, se tornam tenebrosos e em que, pormenor delicioso, a formiga e a cigarra resolvem emigrar para outra história.
Este universo tanto compreende as práticas ancestrais da feitiçaria como os apelos devoradores da tecnologia. Há aqui televisões que se zangam com pessoas e as apagam e figuras mitológicas, como Marte, que têm página de facebook. Tanto se evocam as modalidades sentimentais do espírito como as mais comezinhas contingências do ser vivo. Encontramos aqui homens com terríveis comichões testiculares e cães que assediam – sim, porque não é só aos homens que acontece.
Se se acentua aqui o peso do burlesco e das suas formulações, isso não deve retirar a marca lírica de ABN da Pessoa com Universo ao Fundo. Muitas são as passagens líricas. Alguns exemplos: “Nenhuma mensagem atravessou o corredor da noite”. Ou “Ter sido ave emboscada na sombra”. Ou “Não é Julho, mas é como se fosse”. O final do livro é mais lírico do que cómico. Como que o silêncio de um narrador generoso, decidido a fazer descansar as personagens. Recolhe-se com o dever, cumprido, de ter feito o que fazem os escritores: organizar, um pouco, pelo menos, o caos narrativo do mundo.

Nuno Costa Santos – Texto lido na apresentação de ABN da Pessoa com Universo ao Fundo, que teve lugar na Biblioteca Pública e Arquivo Regional de Ponta Delgada no dia 27 de Novembro de 2017

Ficha Técnica

ISBN: 978-989-8828-35-4

Dimensões: 14×22

Nº páginas: 96

Ano: 2017 | Novembro

Nº Edição: 106

Género: Literatura: Contos

PVP: 12

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