A ração da noite
Catarina Costa
«Poemas há que foram escritos como rações calibradas ao miligrama e que não são mais do que o indispensável à sobrevivência da carne desamparada. Assim deverão ser lidos os poemas d’A Ração da Noite, fármacos depurados para uma fome que os alimentos da terra não saciam.»
[Catarina Costa]
Excerto
A ração da noite
pouco depois da hora de ponta,
intervalo de tempo reminiscente
de recolheres obrigatórios num país
que talvez tenha sido o nosso,
quando se volta por coordenadas
à medida do cansaço, gestos
recolhendo-se do abespinhamento,
essa é a hora mais cruel:
voltas por linhas de viés
sem que ensaies a retirada
amortecedora pela sombra:
experimentas fins indomáveis
és carne desamparada
enquanto o sono não desce
totalitário sobre o corpo
sete da tarde é a hora mais cruel:
a noite não te cai suspensa: aguarda-la
fixamente como se fosses agarrar o fim
neste quarto acolhedor em excesso
onde só tens que dar seis passos
para buscar o necessário, a ração da noite,
há muito preparada
Nota de leitura
Catarina Costa estreou-se em livro há nove anos, com Marcas de Urze (Cosmorama), a que se seguiu Dos Espaços Confinados (Deriva, 2013) e Síndrome de Estocolmo (Textura, 2014). Nessas obras iniciais, o que mais impressionava era o fascínio pelas infinitas possibilidades da linguagem, tacteadas como que a medo. É no entanto com a publicação quase simultânea de A Ração da Noite (Companhia das Ilhas) e deste Chiaroscuro que assistimos à afirmação de uma voz singularíssima, das mais fortes da poesia portuguesa recente. A primeira parte de A Ração da Noite, com a sua escrita do corpo como anomalia, é um poderoso exercício sobre a fronteira subjectiva que separa a sanidade da doença, esbanjando uma energia que nem sempre encontra forma de se expressar (“é uma fúria vã:/ só pode destruir o que já está em cacos”). A ponte entre os dois livros estabelece-se através de um dos poemas mais fortes de A Ração da Noite. Intitulado “Ângulos fixos”, evoca os retratos de quem veio antes de nós e imaginou um futuro desconhecido, essas figuras familiares mas fora do tempo, de quem “desviamos o olhar” porque “sentimos que nos sentenciam/ a admirar com eles a mesma vasteza do presente/ sem que se cumpram os desígnios passados/ e não queremos partilhar com eles o mundo/ de que nos envergonhamos sermos o fruto mais acabado”. […]
José Mário Silva, recensão crítica a Chiaroscuro (Douda Correria, 2016), na revista E do jornal Expresso, 4 de Fevereiro de 2017.