A Fome
José Martins Garcia
Mas de que fome se trata? Aqui também temos duas perspectivas notórias: uma é a fome primária, estomacal, fisiológica, que corrói as vísceras de António Cordeiro, a fome de costeleta e de bife, que inclusive navega a bordo do mítico Carvalho Araújo que levou o protagonista – e várias gerações de açorianos – para Lisboa, onde ele desembarca “em Alcântara, sem tostão no bolso.” Na Capital, a fome não dá tréguas, vitimizando-o “o cheiro da comida, o apelo da comida, a imagem da comida, a alucinação da comida”, em que o ícone é uma saborosa costeleta entrevista num restaurante. Já na universidade, António Cordeiro “prolongava o jantar para além dos limites razoáveis. Mastigava cuidadosamente…”, tudo isso para enganar a fome. Essa carência absoluta faz com que declare, a páginas tantas, “Sempre me foi a fome uma entidade familiar. Profissão: faminto – eis o que não consta nos arquivos deste planeta.” A outra fome é mais sofisticada, é fome metafórica, mas não menos dolorosa: é a constituída pela ausência de tudo o que dá dignidade e conforto à existência, é tudo aquilo que António Cordeiro não tem e que tanto deseja, embora não lhe seja perfeitamente claro o que isso seja.
[Luiz Antonio de Assis Brasil, em “Por Uma Costeleta”, texto de abertura de A Fome]
Excerto
E uma noite, talvez na antevéspera do Natal, fui acicatado pelo demónio da urgência. Sentei-me em frente do senhor Sérgio, ao lado do senhor Pragana, na companhia do vento leste, súbito silvo numa árvore despida ou na recuperação de velhíssimos dias.
A criada da Pensão Ocidente, uma beldade prestes a escolher a prostituição, loura e fresca na antecâmara dos futuros vernizes e bâtons, andava a duplicar-me a ração de fruta, muito dengosa e cheia de pena pelo «rapaz bonito» que andava cada vez mais magro. Mas os meus dedos na pele da sua coxa despertaram-lhe um simples meneio negativo, «não pense em coisas, menino!» De forma que a urgência me ferrou os dentes, simples questão de alguns escudos no bolso – em princípio destinados à compra duma costeleta, daquelas exuberantes costeletas da montra, exibidas depois de temperadas, recobertas duma profusão vermelha a prometer picantes. Varri a tentadora imagem, dei uma punhada na mesa e garanti:
– Vamos às putas!
Nota de leitura