Manuel João Gomes

«amigo da margem, da indisciplina e das revoltas»[1]

Para a história civil: Manuel João Gomes nasceu em Coimbra, em 1948, morreu a 5 de Fevereiro de 2007, perto de Viseu. Causa da morte: broncopneumonia. Sofria de Alzheimer.

Por volta dos seus 20 anos, está em Lisboa, vindo de terras beirãs. Ex-seminarista, refractário à guerra colonial, clandestino[2]. Na “grande cidade” conhece Vitor Silva Tavares (VST), com quem viria a trabalhar durante muitos anos, de início no magazine & etc, que VST armadilhava no Jornal do Fundão, e depois na & etc-editora. A história está mais ou menos feita, em especial no belíssimo texto que o Vitor assina em 2014 na revista Flauta de Luz – com uma nota triste: «a indigência a que o Manuel João Gomes se viu sujeito quando, forçado pela doença de Alzheimer, deixou de poder trabalhar.»[3]

Escreveu quatro livros e um sem número de prefácios/apresentações (alguns em jeito de “átrio”), posfácios, cronologias, notas (algumas manuscritas, como na sua tradução da Alice, de Carroll, na Afrodite), glossários e tanto mais, em obras que traduziu (muitas vezes com a sua companheira, Luiza Neto Jorge), organizou, foi solidário e cúmplice.[4] Traduziu textos teatrais (para o Teatro da Cornucópia), prosa e poesia, ensaio, testemunhos, história, filosofia. Pelos jornais, sobretudo pelo Público (aqui durante quase uma década), deixou centenas de textos de crítica teatral, que talvez um dia se agrupem em livro para dar a ver uma das mais informadas (e dedicadas[5]) histórias do espectáculo teatral em Portugal.

A sua importante e singular colaboração com VST na & etc («não tive nunca mais prolífico mais empenhado parceiro.»[6]), além das referidas colaborações no magazine, desenvolveu-se na tradução de obras de Artaud: Mensagens Revolucionárias e Viagem Alfabética ao México e à Revolução na Companhia de Artaud Actor e Poeta Surrealista. E com VST publicou duas das suas três obras aqui reunidas: Almanaque dos Espelhos e Os Segredos da Jacinta.

O Manuel João colaborou em outras iniciativas editoriais que marcam sobremaneira o século XX português. É o caso da sua participação nas edições Afrodite de Fernando Ribeiro de Mello (entre 1971 e 1976) [7]. Aí, traduziu e colaborou na organização das obras do Marquês de Sade; traduziu (com José Vaz Pereira), anotou e escreveu a “Introdução” para as Aventuras de Alice no País das Maravilhas, 1971 (na segunda edição, 1976, escreveu o posfácio), e, outros autores como Céline, Emma Santos, Michelet, Thoreau, Edward Sexby, La Boétie, Evgueni Zamiatine ou Claire Auzias, tendo ainda traduzido alguns dos textos da Antologia do Humor Negro, de Breton; traduziu igualmente Sobre as Feiticeiras, de Michelet, obra para a qual escreveu um dos “comentários”. Ainda na Afrodite, é de destacar o seu papel em três obras de referência: O Processo dos Távoras: A Expulsão dos Jesuítas, e a Nova Recolha de Provérbios e Outros Lugares Comuns Portugueses.

Noutro campo, que lhe era caro (o sobrenatural, o fantástico, o terror, o nonsense…), traduziu, organizou, prefaciou, elaborou cronologias e bibliografias, diversas obras em duas notáveis colecções: “Meia-Noite” (da Arcádia) e a azul “B” (da Editorial Estampa).

A sua actividade como tradutor foi distinguida em 1988: o Prémio PEN Clube, pela tradução de A Vergonha, de Salman Rushdie.

 

«doce guerrilheiro»[8]

Em 1969, o regime fascista liderado por Caetano é forçado a realizar eleições, “democráticas”, para a Assembleia Nacional. Na colectividade lisboeta Campolide Atlético Clube, actuava então um muito dinâmico grupo de anti-fascistas. Nas acções que promoveu, destaque para um espectáculo teatral[9], com excertos de, entre outros, Shakespeare (A Tempestade) e de Luís de Sttau Monteiro (As Mãos de Abraão Zacut). Estas pessoas e esta actividade teatral foram o embrião do grupo que em 1971 se estrearia com o espectáculo O Avançado-Centro Morreu ao Amanhecer, peça do argentino Agustín Cuzzani[10]. Neste espectáculo, “de vanguarda” e militante, se estreou também o Manuel João Gomes, um sibilino “Apresentador/Vagabundo”. Para este Avançado-Centro escreveu ainda umas pequenas canções que muito brechtianamente davam o tom ao espectáculo (um pequeno êxito de público e de crítica). No Grupo de Teatro do Campolide Atlético Clube ainda escreveu duas letras de canções para um outro espectáculo[11]. A partir desta experiência teatral, o Manuel João nunca mais deixou, de uma forma ou de outra, de estar ligado ao fenómeno teatral vivo.

Na revista Cinéfilo e no jornal Letras e Artes[12], exerceu crítica teatral, mas foi sobretudo no jornal Público que essa cátedra atingiu o pleno (foram quase 10 anos, a partir de 1989, a calcorrear o país de lés-a-lés[13]). Se a crítica teatral, a sua tão singular maneira de a exercer, marcou grande parte da sua vida profissional nunca deixou a de tradutor. E, neste campo, é mais do que justo salientar a sua participação no Teatro da Cornucópia[14] de Luís Miguel Cintra e Jorge Silva Melo: “Sempre tão bem, sempre com tanto entusiasmo e graça e sempre projectos especiais de quem conhecia mais literatura que toda a gente, e quase sempre projectos brincalhões, apesar daquele seu ar sisudo: foi ele que traduziu do latim as cenas de tantas peças de Plauto que em 1979 deram origem ao espectáculo Paragens Mais Remotas que Estas Terras, foi ele que em 1986 traduziu A Mulher do Campo de Wycherley, e, com a Luiza [Neto Jorge], a Vida e Morte de Bamba. E foi ele que em 1990, quando alguém na Secretaria de Estado da Cultura resolveu obrigar as companhias subsidiadas a apresentar anualmente um texto da dramaturgia portuguesa, me sugeriu o teatro esquecido de um autor importante do nosso século XVIII, Manuel de Figueiredo, e, conhecendo como ninguém o nosso jeito, com ele fez uma tão engraçada e inteligente dramaturgia, com teatro dentro do teatro, para o espectáculo Um Poeta Afinado.” [15]

Doce guerrilheiro.

Esta nota biográfica, que se queria fria e factual, deu nisto.

Um abraço, Manel João, até já.

 

Carlos Alberto Machado [texto do vol. I das OBRAS DE MANUEL JOÃO GOMES, Companhia das Ilhas, Novembro de 2021]

Outubro de 2021[16].

 

[1] «amigo da margem, da indisciplina e das revoltas» é umas das frase com que o actor e encenador Luís Miguel Cintra termina o seu texto-testemunho sobre a morte do amigo e companheiro de muitas jornadas teatrais na Cornucópia (Público, 12 de Fevereiro de 2007).

[2] Cf. Vítor Silva Tavares, «Manuel João Gomes, escriba & etc», in revista Flauta de Luz, n.º 2, Março de 2014, p. 115.

[3] Idem, p. 116.

[4] Ver aqui “Obras de Manuel João Gomes”.

[5] «Foi talvez de todos os críticos, o mais discreto, o mais modesto, o mais militante. Foi na crítica de teatro uma espécie de doce guerrilheiro.», Luís Miguel Cintra, in Público, 12 de Fevereiro de 2007.

[6] Id., ibid.

[7] Consultar a importante obra de Pedro Piedade Marques (autoria, organização e edição) Editor Contra. Fernando Ribeiro de Mello e a Afrodite, Lisboa, Montag, 2015.

[8] Luís Miguel Cintra, op. cit.

[9] Onde participei, teria uns 15 anos.

[10] Tradução e Prefácio de Flávio Ferreira, Colecção de Teatro Minotauro, Lisboa, Editorial Minotauro, 1965.

[11] A Vida do Grande Dom Quixote de La Mancha e do Gordo Sancho Pança, versão de Virgílio Martinho do texto de António José da Silva, O Judeu, 1972.

[12] Não tenho acesso à revista Crítica, mas creio que também aí escreveu.

[13] “A sua actividade como crítico rompeu as regras. Viu talvez mais que ninguém todos os espectáculos, sem nenhuma hierarquia. Viu e escreveu muito sobre todos os projectos a que mais ninguém dava importância, os dos muito novos, os de quem não tinha dinheiro, os dos amadores, os de quem não tinha ainda história. Descobriu muitos actores, encontrava talento onde menos se esperava. Mais do que nenhum crítico, trabalhou ao nosso lado [Teatro da Cornucópia] contra a incompreensão da importância pública do trabalho teatral pelas políticas culturais. Foi o crítico mais ousadamente parcial. Mais do que estar interessado em ser juiz da qualidade, trabalhava discretamente contra o poder. Consciente do poder que tinha na sua posição de crítico, boicotando o bom senso.” (Luís Miguel Cintra, op. cit.). Em 1999, enquanto membro do Júri dos Prémios “Almada” e “Ribeiro da Fonte”, promovidos pelo IPAE/MC, assisti a uns 90 espectáculos de teatro em todo o país e quase sempre encontrava o Manuel João – um sorriso nos lábios; nesse ano, e em 1986, quando ele colaborou comigo no Interartes da CGTP-IN, a cultura não era um “drink de fim de tarde”.

[14] Deve referir-se que Luiza Neto Jorge, companheira do Manuel João Gomes, colaborou em Ah Q (1976) espectáculo essencial no trajecto do Teatro da Cornucópia (TC). Também o filho de ambos, Dinis Gomes, foi actor do TC em espectáculos como Ricardo III, de Shakespeare (1985), Vida e Morte de Bamba, de Lope de Vega (1989).

[15] Luís Miguel Cintra, op. cit.

[16] Agradeço os contributos de Jorge Pereirinha Pires, Paulo da Costa Domingos e Pedro Piedade Marques para a elaboração desta nota e da bibliografia do Manuel João Gomes.