Burra Preta com uma Lágrima, de Álamo Oliveira, atravessa um certo mito de peregrinação interior pelos Açores dos nossos dias. Não é uma epopeia, mas seguramente uma alegoria que capta a inocência e a fatalidade. Sendo, como agora se diz, o romance de uma personagem – a burra –, a sua moralidade tem de ser pesquisada numa certa picaresca do homem. Romance de um realismo quase mágico, ele metaforiza tudo. Burra são os homens, as políticas, os padres, os poetas-profetas e os loucos. Temos todos de burra um pouco.

João de Melo

Excerto

O nascimento de Burra Preta não foi um sucesso. Malfadada de nascença, a vida vagamente lhe sorriu. Era “burra” — por isso mesmo hereditariamente resignada, que a vida de “burro” não vai além da carroça, por melhor caminho que se procure. Para mais, sendo “burra” de ilhas, sempre mal lhe assentaram as patas no chão, que nem dá para galope que se veja, tão pequenas são as suas formas quase redondas. E correr circularmente, mesmo que a trote, cansa, enfastia e, sobretudo, entontece. Mas, mal de “burro” é sempre mal torto e, quer viva em terra grande quer em terra pequena, só para carreto lhe servirá o lombo, que nunca foi outro o seu destino.
Burra Preta não foi excepção. Para além do destino, aceitou também a insularidade com a mesma humana e decantada filosofia com que mastigava a sua ração de palha. Circular e parar invariavelmente no mesmo sítio era o vulgar do seu quotidiano. No entanto, em matéria de viagens foi bastante favorecida. Conheceu três ilhas, com duas deslocações de barco inesquecíveis, o que a transformou em singular andarilha do atlântico, espécie de marinheiro ad hoc por falta do mínimo de vocação marítima. Não é por tão pouco que Burra Preta merece um monumento. Mas, saiba-se que ela não tinha culpa da sua condição de “burra” e nem sequer tivera conhecimento da existência da liga protectora dos animais.

Nota de leitura